A história que não consegui escrever

São sete anos sem ele — e sete anos tentando reencontrá-lo nos detalhes por aí.

Helvio Caldeira
2 min readJul 22, 2019

Às vezes, acontece quando eu menos espero: numa foto antiga que encontro no fundo do baú, no rosto do meu irmão, cada vez mais parecido com ele, na seção de Economia da publicação popular na banca de jornal. Na semana passada, foi mais ou menos assim, com mamãe me mostrando um registro encontrado em meio às bagunças da mudança de casa. Na imagem, meu pai sem blusa, eu em seu colo, as flores rosas dando à imagem a delicadeza que só algo como a paternidade deveria ter.

Em outras vezes (muitas delas, aliás), é olhando para dentro que encontro novamente a figura do meu pai. Dele, vejo que herdei não só o nome e os problemas de vista, mas uma série de comportamentos e reflexões peculiares sobre o mundo. No furor das brigas por política, por exemplo, noto que falamos igual, defendemos o mesmo lado, nos agarramos a essa ânsia da justiça para todos. E quando sofro, o faço de forma parecida à que recordo de si: sangrando em silêncio, escondo as cicatrizes, que é pra ninguém enxergar. Vai ver é por isso que minha analista diz que, em se tratando das nossas narrativas, ainda sou impreciso no que ele foi e o que tenho sido até aqui. É que papai também doía escondido.

Por muitos anos, a morte do meu pai foi a história que eu nunca consegui escrever. Com quem chegasse, que percebia de cara, acordos tácitos eram firmados aos poucos: não entre por aí, não vá por este caminho, chega. E vivia assim, me esquivando de perguntas que julgava perigosas, contornando as situações em que um conhecido certamente indagaria sobre a sua doença, seu velório, seu enterro. Até que um dia sua partida deixou de ser minha sombra para, finalmente, se tornar o propulsor das mudanças mais significativas da minha juventude.

Esse mês faz sete anos desde que, após meses perdendo a memória, meu pai resolveu se transformar em estrela. Sete anos em que vivo apenas de memórias, recordações que me questiono se aconteceram ou se são apenas coisas da minha cabeça. Sete anos em que eu me pego pensando, todos os dias antes de dormir, no que ele acharia do Helvio de hoje: resiliente, mas vulnerável, certo demais sobre as coisas do mundo, mas ainda um aluno quando o assunto é o próprio coração. Dos sete, um ano de introspecção, três de tristeza profunda e outros três de verdadeira ressignificação do que aconteceu. Ainda bem.

A verdade é que meu pai precisou morrer para que eu aprendesse que há beleza na dor e poder na perda — e que, demore o quanto demorar, uma hora a vida volta pros eixos. Conseguir escrever sobre ele tem sido o primeiro passo.

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Helvio Caldeira

Jornalista, autor de “Caro Rafael Clemente” e coautor do livro “Vejo Cores em Você” (Ed. Vecchio). Nas horas vagas, discuto literatura, gênero e Taylor Swift.